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Filosofia Capoeira por Mestre Nestor Capoeira.




por Nestor Capoeira © 2007
Capoeira é tudo que a boca come
(Mestre Pastinha, 1889-1981)
Capoeira é "mardade"
(Mestre Bimba, 1900- 1974)
   A malícia, considerada a filosofia e a essência do jogo, é um dos "fundamentos" básicos da capoeira. A malícia, num sentido amplo, é a maneira como o jogador "vê" e "joga" com a vida, o mundo e, especialmente, as pessoas. Num sentido mais específico, a malícia é o que permite um jogador "enganar" o outro, fingindo que vai fazer algo quando, na verdade, está preparando um outro tipo de ataque.
   Cada mestre, cada jogador, e até cada iniciante, explica a malícia da sua maneira. E isto não é errado: não há como transformar a malícia num conceito fechado, numa "verdade" expressa em palavras; da mesma maneira que é impossível exprimir em palavras "o que é a vida", "o que é a arte", "o que é o amor", a "amizade" ou o "ódio".
   Eu sempre fui um apaixonado pela "filosofia da capoeira" - a malícia - desde que fui iniciado por mestre Leopoldina, em 1965.
   Nos anos seguintes, conheci os mestres Bimba, Pastinha, Noronha, Waldemar, Caiçaras, Canjiquinha, Paulo dos Anjos, Atenilo, Eziquiel, Bom Cabrito - todos já se foram -, e muitos outros. Sempre que podia, conversava e, sobretudo, convivia e observava como se portavam em diferentes situações. Perguntava, também, depois de já ter estabelecido um mínimo de camaradagem:
   - Mas, afinal de contas, mestre, o que o sr. acha que é essa tal de malícia ?
   As respostas eram as mais variadas possíveis, algumas eram poéticas e misteriosas, outras engraçadas, ainda outras eram racionais.
   Com os anos, a observação e a convivência, as experiências pessoais, as respostas e definições dos Velhos Mestres e, principalmente e sobretudo, o Jogo na Roda com pessoas muito diferentes, em diferentes lugares; forjou, dentro do meu corpo, e daí para meu cérebro e para as páginas de papel onde eu escrevia, o que é a malícia - ao menos, como Ela se apresentou para mim.
"Desenho de Nestor Capoeira baseado em fotos dos mestres Caiçaras, Livínia, Waldemar, Cobrinha Verde, Paulo dos Anjos, João Grande, Gato, Canjiquinha, João Pequeno, Maré, Atenilo, e Leopoldina"

   No livro "Capoeira, o pequeno manual do jogador" (1981), eu expliquei que, num sentido mais específico, a malícia é aquilo que permite ao jogador saber o que o outro vai fazer; e, ao mesmo tempo que o engana - fingindo que vai fazer algo, e fazendo um movimento completamente inesperado -, dominando completamente o Jogo.
   No livro "Capoeira, galo já cantou" (1985), dissemos que, do ponto de vista da Capoeira, os seres humanos são mediocres, mesquinhos, limitados, falsos, preconceituosos, invejosos, covardes e crueis. A sociedade na qual vivemos - na visão da Capoeira - também não é melhor: riquezas mal distribuídas, recursos naturais mal utilizados, injustiça social, miséria, guerra e violência; consumismo e controle através da midia, valores falsos e estereotipados.
   Isso fica bem claro quando escutamos algumas músicas clássicas de capoeira:
"Êta mundo velho e grande,
êta mundo enganador.
se canto desta maneira
foi vovô quem me ensinou"
"Iê quer me matar,
iê na falsidade"
"Urubu come folha?
Côro: É conversa fiada!"
   O "urubu", ao qual se refere o canto, não é a ave. O "urubu" somos nós, os seres humanos, que não somos mansos herbívoros - "come folha?" -, mas, sim, terríveis carnívoros.
   A malícia da Capoeira é o conhecimento de todas estas coisas.
   Ou seja, é o "conhecimento da verdadeira natureza do homem" (urubu come folha? ... é conversa fiada). Mas este "conhecimento" deve ser temperado com uma grande dose de "bom humor" (dizemos "bom humor" em falta de um nome melhor).
   Este "bom humor" está representado, na roda de capoeira, pela energia positiva e alto-astral do som que acompanha o Jogo.

"Carybé, aproximadamente 1960"
   Como a malícia da capoeira é brasileira, podemos dizer que ela está "vestida" com as "roupas", e as "cores", da cultura afro-brasileira e da cultura-popular-marginal-urbana (leia-se, "malandragem").
Meu camarada,
o capoeira é muito mais
que um lutador que dá pernada.
Ele é um artista,
sua força é a alegria de viver.
Ele conhece a palavra-chave “Amor”
e no entanto o capoeirista sabe:
a maldade existe.
Será que tu ainda não ouviu
o que se anda cantando nas rodas por ai:
Galo já cantou,
já raiou o dia.

(Nestor Capoeira)
   Esta malícia ( conhecimento dos homens + bom humor) permite ao jogador "ver" este cenário vivo, brutal e cruel - o mundo em que vivemos -, sem se tornar deprimido, amargo, agressivo, árido; ou preocupado e "sério" em demasia.
   O "conhecimento da verdadeira natureza do homem" (uma das partes da malícia), incluindo o conhecimento de si próprio, vêm (um pouco mais ou um pouco menos) para todos os jogadores: é consequência direta de jogar com diferentes pessoas (de diferentes personalidades, ideologia, origem social, idade, cor, sexo, etc.), em diferentes rodas, em diferentes lugares.
   Este "conhecimento" não é um "saber racional". Ele não é absorvido, apreendido, e encarnado, através da leitura ou falando sobre ele. É uma espécie de "conhecimento" ou "saber corporal" que adquirimos jogando capoeira (queira ou não queira, o jogador).
   Neste sentido, o "conhecimento dos homens" é diferente do "bom humor" (a outra parte da malícia). Pois o "bom humor" tem que ser alimentado e desenvolvido por iniciativa pessoal de cada jogador.
   O "bom humor" não vem como uma consequência inevitável do Jogo.
   O "bom humor" (dizemos "bom humor" em falta de um nome melhor), ao qual nos referimos, não é aquele que vemos na TV; e também não é o "don't worry, be happy" (não se preocupe, seja feliz) "politicamente correto" em alguns círculos moderninhos americanos.
   O "bom humor" é uma espécie de tesão pela vida.
   Você já viu crianças brincando na beira do mar?
   Elas pulam numa perna só, correm, gritam, fogem das ondas que "se desmancham na areia", e perseguem-nas incançavelmente sem se cançar, pois estão alimentadas por um outro tipo de energia (de difícil acesso aos adultos, exceto, talvez, nas festas, no carnaval, etc.). É este estado de espírito que estamos chamando de "bom humor": a pessoa está totalmente presente e curtindo aquele momento.
   O "conhecimento", sem o apoio do "bom humor", pode se tornar muito "pesado". Pode transformar o jogador numa pessoa incapaz de "curtir" a vida.
   Pois o "conhecimento" traz Poder para o jogador. E o Poder, sem "bom humor", transforma a pessoa em alguém que só se interessa - e é completamente fascinado - pelo Poder e seus jogos. O Poder, com o dinheiro como sua faceta mais vulgar, se torna mais importante que a amizade, o sexo, o amor, a arte e as curtições.
   Isto é algo que acontece com bastante frequência e pode ser observado em muitos mestres e professores. Isto afasta o jogador da curtição da vida, e da essência do Jogo.
   Agora talvez você entenda melhor a canção:

Meu camarada,
o capoeira é muito mais
que um lutador que dá pernada.
Ele é um artista,
sua força é a alegria de viver.
Ele conhece a palavra-chave “Amor”
e no entanto o capoeirista sabe:
a maldade existe.
Será que tu ainda não ouviu
o que se anda cantando nas rodas por ai:
Galo já cantou,
já raiou o dia.

Fonte Mestre Nestor.

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